Paulo Rosa

Uma psiquiatra abagualada

Por Paulo Rosa
Médico do SUS, Sociedade Científica Sigmund Freud Pelotas
[email protected]

Nise da Silveira, 1905-1999, não levava ninguém de compadre. Nunca afrouxou os tentos e só fazia o que queria, vida afora, fosse pra quem fosse.

Acaba de sair a nova edição ampliada de sua biografia, quase 200 páginas, 2024, Paidós, por Ferreira Gullar, ninguém menos, a capa feita pelo nosso Odyr, ninguém menos.

Que me conste, ainda não faz parte da bibliografia recomendada a jovens e a velhos psiquiatras. Mais do que uma pena, um erro crasso. A trajetória, a inquietude, a formação, a posição política, a independência, a luta pela democracia e contra a ditadura, as leituras que fez de Freud, Jung e Spinoza, a leveza clínica, a escuta arguta, a simpatia por Artaud... o que de melhor para praticantes e aspirantes a ‘médicos da alma’?

A orelha do livro é preciosa. Gullar perguntou: “como definiria a loucura?” Nise respondeu: “nesse mesmo livro [Cartas a Spinoza], cito uma frase que Spinoza me disse num sonho: “a loucura é a pior forma de escravidão humana”. Concordo com isso. Tire-se por aí a temperatura da obra.

Gullar, que foi seu amigo, a descreveu como ‘rebelde’. Achei pouco. E a vejo mais como abagualada, no melhor sentido pampeano - veja-se o Dicionário Pampeano do Schlee, Pelotas, Fructos do Paiz, 2019. Questionadora, inconformada, desafiadora, resistente a pressões, seja do poder psiquiátrico, seja de qualquer outro, veraz, contestadora, xucra. Enfrentou discriminações, por ser mulher (única estudante de Medicina numa turma de 150), por ter sido presa pela ditadura de 1964, por ser contra tratamentos psiquiátricos invasivos - hipermedicação, eletrochoque indiscriminado, isolamento abusivo. No transcurso dessas experiências infaustas manteve o tirocínio hipocrático e estabeleceu, de forma inaugural no País, a terapêutica ocupacional através da arte, hoje cada vez mais reconhecida e aplicada. Contribuiu de modo maiúsculo com a Reforma Psiquiátrica, que se iniciou na Itália e ganhou o mundo, humanizando hospitais e hospícios, consagrando outros modos, não asilares, para doentes mentais com formas graves.

“Uma estética da rebelião”, define o escritor Marco Lucchesi ao observar o itinerário médico de Nise e sua amizade particular com Ferreira Gullar. Disse mais, “...o livro que mudou a psiquiatria - o Imagens do Inconsciente -, cuja linguagem [de Nise] se divide entre Machado e Graciliano. Cada imagem, um mergulho raro, o logos da loucura, dos estados do ser, inumeráveis...’

“Quem é Nise da Silveira?”, indaga e responde Gullar: “...Nise não se trancava no gabinete a tirar ilações e fazer teorias... participava do trabalho, estava sempre presente nos ateliês, nas reuniões, no convívio com os doentes... [transcreve de Nise] quanto mais grave a condição esquizofrênica... maior a necessidade... de um ponto de referência e apoio... se tornando uma relação de amizade”.

Lucidez clínica absoluta. Nise da Silveira, um caso raro em Psiquiatria. ​

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Anterior

Uma nova configuração geopolítica?

Próximo

Lançamento do 2º Workshop ESG & Sustentabilidade 2024

Deixe seu comentário